sábado, 19 de junho de 2010

O ano da morte de José Saramago I - A prosa



(...)
Agora, sim, podem partir. O padre Bartolomeu Lourenço olha o espaço celeste descoberto, sem nuvens, o sol que parece uma custódia de ouro, depois Baltasar que segura a corda com que se fecharão as velas, depois Blimunda, prouvera que adivinhassem os seus olhos o futuro, Encomendemo-nos ao Deus que houver, disse-o num murmúrio, e outra vez num sussurro estrangulado, Puxa, Baltasar, não o fez logo Baltasar, tremeu-lhe a mão, que isto será como dizer Fiat, diz-se e aparece feito o quê, puxa-se e mudamos de lugar, para onde. Blimunda aproximou-se, pôs as duas mãos sobre a mão de Baltasar, e, num só movimento, como se só desta maneira devesse ser, ambos puxaram a corda. A vela correu toda para um lado, o sol bateu em cheio nas bolas de âmbar, e agora, que vai ser de nós. A máquina estremeceu, oscilou como se procurasse um equilíbrio subitamente perdido, ouviu-se um rangido geral, eram as lamelas de ferro, os vimes entrançados, e de repente, como se a aspirasse um vórtice luminoso, girou duas vezes sobre si própria enquanto subia, mal ultrapassara ainda a altura das paredes, até que, firme, novamente equilibrada, erguendo a sua cabeça de gaivota, lançou-se em flecha, céu acima. Sacudidos pelos bruscos volteios, Baltasar e Blimunda tinham caído no chão de tábuas da máquina, mas o padre Bartolomeu Lourenço agarrara-se a um dos prumos que sustentavam as velas e assim pôde ver afastar-se a terra a uma velocidade incrível, já mal se distinguia a quinta, logo perdida entre colinas, e aquilo além, que é, Lisboa, claro está, e o rio, oh, o mar, aquele mar por onde eu, Bartolomeu Lourenço de Gusmão, vim por duas vezes do Brasil, o mar por onde viajei à Holanda, a que mais continentes da terra e do ar me levarás tu, máquina, o vento ruge-me aos ouvidos, nunca ave alguma subiu tão alto, se me visse el-rei, se me visse aquele Tomás Pinto Brandão que se riu de mim em verso, se o Santo Ofício me visse, saberiam todos que sou filho predilecto de Deus, eu sim, eu que estou subindo ao céu por obra do meu génio, por obra também dos olhos de Blimunda, se haverá no céu olhos como eles, por obra da mão direita de Baltasar, aqui te levo, Deus, um que também não tem a mão esquerda, Blimunda, Baltasar, venham ver, levantem-se daí, não tenham medo.
(...)
in José Saramago, Memorial do Convento

Sem comentários:

Enviar um comentário